A noite em que me sentei com o Jamelão
Era uma noite de sábado de 1999. Creio que na primavera. Eu morava em Porto Alegre fazia menos de um ano. Fui ao Se Acaso Você Chegasse, que à época ficava na Venâncio, quase esquina com a Lima e Silva, perto da redenção. Não era boate ainda, era casa de samba. Fui com alguns amigos de Caxias do Sul. Era o show do Jamelão.
Sentamos em uma mesa, daquelas de baile, que reservamos com antecedência. Ele estava acompanhando de um ou dois músicos. Lembro que um tocava violão e o outro percussão. Era uma noite dedicada ao Lupicínio. É difícil dimensionar, principalmente para quem vem de fora, o quanto Porto Alegre aprecia samba e carnaval. A cidade é profundamente enraizada nessas expressões culturais e o bar estava lotado.
No final, depois de algumas doses de uísque e já meio embalados, arriscamos uma aproximação e fomos convidados por Jamelão para sentarmos. Foi um momento incrível, pois ele foi muito receptivo, já com mais de oitenta anos de idade e com limitações físicas, contou muitas histórias e respondeu nossas perguntas. Falamos sobre nomes da mangueira, relação com Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Tulio Piva e muitos curiosidades sobre ele, cuja trajetória se confunde com a própria história do Brasil.
Uma das particularidades da biografia de Jamelão, que particularmente acho muito curiosa, é que ele iniciou na carreira artística num ambiente bastante diferente dos estereótipos normalmente relacionados ao samba, muitas vezes vinculado à mesa de bar e a histórias imprevisíveis, como foi a biografia do próprio Cartola. Jamelão, diferente disso, tem o inicio de sua carreira como crooner.
Para quem não sabe um crooner era, originalmente, o cantor principal de uma orquestra de baile ou de um conjunto musical que se apresentava em clubes, cassinos, boates e rádios — especialmente entre as décadas de 1930 e 1960. O termo surgiu nos Estados Unidos, mas se espalhou pelo mundo, inclusive no Brasil, e era caracterizado por um estilo vocal suave, com roupas formais, que fazia o elo entre a música orquestrada e o público. A atividade exigia muita técnica, pois o rádio não perdoava falhas e o ambiente era de muita disciplina sonora. Um crooner era, essencialmente, também, um contador de histórias.
Voltando para aquela noite da primavera de 1999. Jamelão já partiu, mas eu lembro bem do Paulinho, do Piti, do Leonel. Talvez do Felipe, não tenho certeza, qualquer hora confirmo. Lembro também de um trevo de quatro folhas e de uma bandeirinha da estação primeira.
E lá se foram mais de vinte e cinco anos.