Tenho uma relação visceral com o Uruguai. Desde muito pequeno fui acostumado a passar, com a família, todos os anos, parte do tempo de lazer em Montevideo e nos seus arredores. Tenho lembranças de vários momentos por lá e, quando adulto, passei a fazer, com os meus filhos e esposa, o mesmo que meus pais faziam comigo e com meus irmãos. Por isso, sempre retornamos para a banda oriental, as vezes duas, três vezes ao ano, e gastamos nosso tempo por lá.
Trato sobre este assunto pois desde que li sobre a morte do ex-presidente uruguaio, hoje à tarde, próximo das quatro, fiquei pensando em tudo que o Uruguai representa, não apenas para mim, mas para a humanidade. E me parece que isso tem muito a ver com José Alberto Mujica.
Ele foi presidente do Uruguai entre 2010 e 2015, mas sua relevância transcende o cargo, pois representa um tipo raro de liderança, que mistura simplicidade, firmeza ética e uma conexão visceral com a vida cotidiana do seu povo. Sem dúvida, uma das figuras políticas mais autênticas da América Latina contemporânea. E são muitos os exemplos deixados por ele. Lembro da opção de doar 90% do seu salário de presidente para organizações sociais. Ele dizia que com o restante, o equivalente ao salário médio de um uruguaio comum, já vivia bem.
Recusou morar no palácio presidencial, preferindo continuar vivendo em sua modesta chácara em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu. Realizou um discurso marcante na Assembleia Geral da ONU em 2013, no qual criticou duramente o modelo consumista global. Disse ele: “gastamos o tempo de nossas vidas para comprar coisas. Quando compramos algo, não pagamos com dinheiro. Pagamos com o tempo de vida que tivemos que gastar para conseguir esse dinheiro.” Após deixar a presidência, não buscou enriquecimento pessoal com sua fama. Dizia que um ex-presidente não deve cobrar por suas palestras, pois é sua obrigação compartilhar suas experiências com as pessoas. Não quis cargos internacionais e não esteve envolvido em casos de corrupção.
Não faço referência a isso tudo apenas para exaltar Pepe Mujica, pela data de hoje, mas acima de tudo para dizer que ele não é uma exceção ou uma figura excêntrica. Sua maneira de viver é uma expressão autêntica da identidade do Uruguai, construída por ações de um povo que tem a educação como bem comum e a simplicidade como jeito de viver. Essa maturidade civilizatória do Uruguai não é privilégio de uma ideologia.
No plano político isso ficou ainda mais evidente nas eleições do ano passado, quando Luis Lacalle Pou, mesmo sendo de outro espectro político, passou a faixa presidencial para seu adversário, Yamandú Orsi, com elegância, consenso e espírito democrático. Um gesto que mostra que essa postura não é exclusividade de Mujica ou da esquerda — é um traço do próprio Uruguai.
No plano social o país conseguiu, com passos firmes e serenos, mudanças que em outros países geraram guerras culturais, como a legalização da maconha, do aborto e o casamento igualitário. Independente do apreço a estas causas ou não, os debates por lá, incrivelmente, parecem blindados à polarização que corrói tantas outras democracias.
Mujica, no entanto, foi mais do que um exemplo: foi um grande representante dessa identidade uruguaia, alguém que soube transformar em palavras e gestos aquilo que muitos vivem em silêncio. Um contador de histórias do seu povo, com a sabedoria de quem conhece a dor, a resistência e a beleza das coisas simples. E por isso, o mundo inteiro parou para ouví-lo.
É por isso e por outras coisas mais, como o doce de leite e o mate amargo, que quero muito que meus filhos sigam a tradição da minha família.